Todo mundo esperando uma segunda chance pra refazer as besteiras ou então uma distração do sabor amargo que foi se depositando aos poucos, enquanto se despia muito vagarosamente e alteradamente. Pra sentir alguma outra coisa que não seja isso.
Nos últimos resíduos, a palavra que pinga sobre as nossas cabeças, e que a gente evita pronunciar pra não admitir que tem: esperança. De um dia inventarem um lugar pra onde não se leva escombros. Pra onde a viagem não tem intercorrência, o percurso macio, sem turbulência, porque a gente voa acima de tudo. O que é uma armadilha, então, cuidado: colocar-se acima de tudo. Tem tanta gente morrendo disso.
Um mosaico de coincidências. Todos os órgãos, o céu, o jornal de ontem, a música bem na hora, as crianças com mais medo do que dor. Tudo fatalidade. Uma hora você escolhe o seu papel, porque a não-ficção é um risco doido, e foi proibida, parece que agora todo mundo tem que escolher o que vai ser. Como desgastar o brilho todo de uma vez só, pra depois lustrar novamente e telefonar pra mãe e choramingar - vem me buscar.
Tem faltado um dos sete elementos que não se compra e também não se desenvolve. Cadência. A única coisa não-linear sem prazo de validade é filme. O resto: primeiro é mágica, depois é absurdo. Os direitos ficam todos seqüestrados por um tempo que - das duas uma: ou não chega, ou não passa. O difícil é não perder o dos outros. Responsabilidade grande: guardar alguma coisa que não é sua. Tempo nasceu assim mesmo, sem sinonímia, recurso não-renovável. E, mesmo assim, a gente teima em empurrar ele de volta, pra dentro do tubo, não é? Pensamos assim: um dia ele cansa e vai ter de sobra. Pras segundas chances, pros primeiros erros, a coleção de arrependimentos. Que todo mundo jura que não tem. Tenho uma pergunta: por quanto tempo o indivíduo consegue ficar fraco sem perder a vontade de acordar no dia seguinte?
E qual é a função primordial da menina bem no meio? O nome dela é tão lindo que não consigo parar de falar. Fico repetindo, repetindo, pra ver se fica inscrito em mim, pra eu poder tomar coragem e ir até a sua casa lhe agradecer. Levo aquele cachecol que gastei uma noite inteira pra fazer, todo em ponto de cruz. Mas de repente melhor seria esperar até o próximo ano, o calor está chegando mesmo. Vê, a gente arranja desculpa pra tudo.
Eu sei muito bem o que aconteceu: no dia em que eles se conheceram ele foi defendê-la mas ela estava acostumada a ser sempre forte, sozinha, nem percebeu, nem mesmo no final de tudo, quando se despediram, e ele sorriu. Antes disso, pela primeira vez em doze horas, sentou-se. Estavam a sós: ela apoiou os cotovelos da mesa e segurou a cabeça com as mãos, traduzindo a pessoa em estafa crua. Ele perguntou: te consome muito, né? Ela não respondeu, virou a cabeça devagar em direção a ele. Parecia cansado. Era mais jovem, mas dava a impressão de estar ali para protegê-la. Pois ninguém mais se deu ao trabalho. Mas, não, ela não percebeu. Olhou-o mais uma vez. Ele parecia gostar de jogar bola: cabeça de área, ela apostou. Deve ter um ciúme danado da irmã, se é que ele tem uma. Deve ser feliz.
No meio disso tudo a avó diz: menina, vai dar uma volta, vai brincar, vai descobrir o mundo. Só que cada choro tem uma causa, ó: um dia foi porque a goiabada acabou, outro dia foi porque o gato sumiu, no outro foi porque o bicho picou e no outro foi só manha mesmo.
No meio disso tudo, o pai diz: menina, pensa bem, tem certeza de que é isso que você quer pra sua vida? Só que acabou escrevendo as cartas certas pras pessoas erradas, e não teve jeito, acabou entrando no antibiótico.
É só dentro do carro, muito tarde, numa avenida estranhamente deserta. Só aí que a gente se esquece das peças que faltaram. Que a gente descobre. Porque resolveu fazer tudo aquilo. E porque amanhã vai fazer de novo. E de novo.