Foi a última frase que eu me lembro de ter ouvido. Porque logo depois você apareceu de novo, me puxando pela mão, com pressa, vestindo um sorriso levado que eu não via desde. A gente saiu dali: as conversas muito convenientes, as pessoas muito chatas, a comida muito sem sal. E saímos mundo abaixo, escrevendo "lave-me" até nos táxis, até nos ônibus, e pegamos as bicicletas e fomos cobrar pedágio grátis dos carros que entravam: escrevíamos no papelzinho os signos das pessoas, o nome de seus animais de estimação e o lugar mais bonito que elas tinham ido. Às vezes a gente pedia pra soletrarem alguma coisa. Por exemplo, Liechtenstein, que não tem exército até hoje. Devolvíamos pros motoristas e eles acabavam achando engraçada a nossa seriedade. Um segredo: acho que eles guardam até hoje aquele recibo.
Chegaram flores: é pra mim? Não podem, não tenho mais endereço. Não queria mesmo. Você riu com um deboche charmoso quando eu falei assim, desdenhando; sem querer comprar. Mas comprando.
Você era o rapaz mais lindo do quarteirão e um dia eu comecei a sonhar que eu tinha que ficar nas pontinhas dos pés pra olhar através da sua janela, espiar o seu banho, como o seu shampoo fazia espuma e como você inclinava a cabeça pra trás e fechava os olhos e quase sorria, quase morria, quase me via no seu espelho. Saía do seu assovio um blues antigo, que na época eu nem conhecia, achava que só existia ali, na sua boca, na minha pálpebra cerrada. Depois você começou a me sussurrar umas coisas quando eu passava. Que eu tinha os cílios mais bonitos que você tinha visto, e que você queria um beijo meu de borboleta. Mas aí você namorava uma loira, depois uma morena, depois uma loira de novo. Será que era de propósito? Aquele olho comprido esticado pra mim. Que não entendia nada. Eu ficava só descendo as escadas da frente do meu prédio como se fosse amarelinha. Com o meu casaco de ovelhinha, pensando como será que era ser uma arraia.
Faz tanto tempo isso.
Veio o telefone sem fio, veio o dvd, vieram os cinemas com muitas salas, chegaram os extraterrestres e difundiram a telepatia. Vimos tudo abraçados, olhando pela tv. E pela nossa janela, que todo dia dava pra lua. Você sempre me tratando diferente de todas as loiras, de todas as morenas, eu era uma água cristalina que você encontrava depois de tantas horas debaixo do sol. E antes de dormir a gente ia roubar goiaba do vizinho.
Só que você começou a ir embora e eu fui ficando cinza.
E foi só quando ele disse: - Você é todo o meu amor. Que consegui parar de tremer. Lembrei de quando a gente cantava a música do djavan como se fosse uma piada com o nome de uma cachoeira.
Fiquei sentida: não percebeu que eu não tenho mais medo de dirigir na avenida brasil. A gente devia beber guaraná pra comemorar porque álcool eu não posso mais. Por causa do fígado e das enzimas que eu não tenho; acho que nasci sem.
Existe um truque pra não chorar nem um tiquinho. Ficar ali fazendo a maior força pra fingir que tudo aquilo é só um filme, e quase ver o diretor orientando a gente, você passando o texto, o moço da câmera ajeitando um ou outro detalhe técnico. Aquele montão de figurante sendo maquiado tantas vezes que já nem sabiam com que cor eles tinham nascido. Tudo muito subliminar e fictício, a dois metros de acontecer. É quase choro. Mas não é. E nem vai ser.