Estava envelhecendo em progressão geométrica. A aspereza que o mundo trazia lhe derramava litros de leite talhado narinas adentro. Apodrecia sem perceber. Quando deu por si, já era envolta em rachaduras separando uma metade da outra. No meio o quê? Tudo aquilo que sabia. E que a tornava hemi, semi, dicotômica. Abençoada seja toda a ignorância humana. Ela pensou.
Andou resmungando por aí que vivia por duas. Encarnava personagens de livros diferentes. O que tornou a vida difícil, as horas mais curtas. O cansaço lhe serpenteava em lascas de ferro. Pesado. Pesava. Percebeu que não conseguia mais correr até o ônibus. Passou a levantar mais cedo, teria que andar. Bem-de-va-ga. R. Até o ponto. Uns três dias depois não conseguia mais. Subir escada. Lavar a louça. Até pentear os cabelos. Se lembrou da moça do filme: esta vida é um calvário. O ar faltava, cada vez mais. Pensou que talvez não fosse o oxigênio inesgotável. Achava por bem classificá-lo com maior cautela, rearranjá-lo entre os gases nobres.
Sentia a falta dele. Tanto.
O estômago era queimação. O doutor lhe tinha dito que não estava digerindo direito os alimentos. E que o esôfago não tinha proteção. Imaginou que talvez fosse feito de algodão, o tal esôfago... Tome este remédio aqui que vou lhe passar, e você vai se sentir bem melhor. Chama-se omeprazol. Ela olhou bem pra cápsula: metade verde, metade branca. Duas metades. Que nem eu, pensou. Engoliu-a a seco, sem água, sem nada.
Cantarolou um pedaço de um choro antigo. Seu avô tinha-lhe grudado à mente naquele dia, já era a quarta vez que pensava nele.
Não sabia dizer se os fios novos que lhe brotavam na fronte eram mesmo brancos ou se era o reflexo da luz do banheiro.
Queria dizer umas quantas palavras novas fossem necessárias. Pra girar tudo de volta, de onde havia começado. Foi bem aqui, nessa hora, que ele voltou.
O oxigênio.