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quinta-feira, maio 06, 2004  
Vó,

Outro dia te vi na calçada. Você, sentada no banco de concreto virado pro mar, penteava os cabelos de mel de uma outra menina distraída. Ela brincava com os próprios dedos, se entretinha com essas coisas bobas a que as crianças costumam se ater. Mas meu carro passou rápido (não era eu no volante). Não consegui gritar. Acenar. Nada, não deu tempo. Engoli as suas duas letras exclamativas, que são mais minhas do que suas, são mais minhas que de qualquer outro neto - vó!. Olhei pra frente de novo, mas fiquei lá atrás, meus cabelos nas suas mãos, quando eu ainda não tinha tanta pressa. E você não precisava de corticóide pra controlar bronquíolos nervosos. Tudo se resumia a um momento isolado.

As minhas intimidades sem senhas, meus sonhos todos de clara em neve. Principalmente à tarde, quando eu lambia as pontas dos dedos depois que o bolo ia pro forno. (Até hoje gosto de massa crua.) E o resto leve, o ar respirável. Sem a culpa, essa culpa pesada dos fracassos pequeninos que eu coleciono. Não fazia questão de roupa, brinquedo, boneca. Mas eu queria tanto um cachorro. E isso era insubstituível: nem peixinho de feira, nem gato de rua, nem mesmo o cãozinho da vizinha. Quando a gente é pequena tudo parece mais importante do que devia ser. Os impactos deixam cicatriz, porque somos mais vulneráveis, mais essência, mais matéria. Às vezes as circunstâncias me deixavam doente. Quando minha mãe foi pra Cuba, quando roubaram aquele nosso filhote de gato. Mas aí você me carregava pra perto, longe dos acontecimentos. Logo eu mudava de nome, de corte de cabelo e ia morar na lua. Ou dentro da piscina da sua casa. Voltava a sorrir sincero, a falar com cor e a dançar as músicas que você cantava. E que depois tocavam dentro da minha cabeça. As suas histórias viravam filmes e eu dormia com os anjos. Brinquei com todos os bichos que você já teve. Gostava muito do Jambo, aquele cavalo de crina avermelhada, que seu pai tinha. Subi nele várias vezes, enquanto você não estava olhando. Também vesti aquela fantasia que você colocou escondida. Que seu pai te fez tirar, te fez chorar. Peguei emprestado o seu dinheiro pro picolé e comprei um pra mim também. Me lembro do seu professor de história, aquele que fazia perguntas e batia com a régua na mesa o número correspondente ao seu número na chamada. Te diziam: “quarenta, zero, senta”.

Depois veio a minha mãe, depois o meu tio, depois eu. Depois todas as minhas fantasias de carnaval, o dia em que eu aprendi a andar de bicicleta, as amoras que eu comia no pé, as jabuticabas, o jamelão, a minha roupa de festa junina, as nossas viagens pra serra, o meu vestido de 15 anos, o dinheirinho pro meu próprio carro. As suas rabanadas todo fim de ano.

Me lembro de tanta, tanta coisa. Mas agora o que eu faço com tudo isso? que me compõe, descompõe e me deixa desafinada. Às vezes deixo criar mofo, às vezes conto em voz alta, pra alguém que ainda não existe. Mas acho que um dia.
Ainda vou fazer um filme.
Sobre todas essas minúcias que a gente vivia.
   posted by Fernanda at 11:58 AM (imagens)

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