Ela deixou que ele respondesse:
- É. Mais ou menos.
- Bom, esse apartamento aqui é bem amplo, bem arejado. Vocês queriam um andar alto, não é?
- É. Algum lugar de onde não se ouça o barulho da rua.
O elevador chegou. Abri a porta gentilmente:
- Décimo quarto andar.
Eu falei, sorri.
- Eu gosto desse bairro. – Ela falou, pela primeira vez, enquanto eu abria a porta.
Percebi: tinha uma luz imensa dentro de si. Mas uma luz apagada. Nada parecido com o que havia restado dela nas minhas memórias adolescentes.
Ele sorriu pra ela. Os olhos azuis de anjo indissolúvel. Era médico, obstetra.
Entramos os três.
- Bom, aqui a gente tem uma sala ampla, piso de tábua corrida, com sinteco. Os antigos donos fizeram uma reforma enorme 3 meses antes de saberem que teriam que ir pra fora. Então o apartamento tá novo. Consertaram vazamento, infiltração, descupinizaram...
- Tem varanda? – ele interrompeu
- Tem, sim. Venham ver, a vista é muito boa.
E quando chegamos lá comentei, sem pensar:
- Que bom que vocês decidiram vir olhar apartamento por aqui.
Ela falou que
- A gente não quer mais nada com aquela gente, aquele lugar...
Apertou os olhos. Ela engolia o choro a cada cinco passos. Ele tinha olhos e mãos pacientes, a abraçava. Era uma fortaleza. O carinho era inesgotável. Eu tive inveja, eu que me afogava nas luzes etílicas de festas frenéticas (sempre os homens errados). Mas logo lembrei-me da dor que ela sentia. Devia sentir. E a inveja dissipou-se. Sobrou a pena.
Ela também se lembrava de mim:
- Você estudou com meu irmão, não?
- Estudei, sim. Como é que ele está?
- Bem. Tem um escritório no centro. Família. Tudo normal. Eu lembro que ele ia almoçar bastante na sua casa no ano do vestibular.
Eu me lembrava também. Eu me lembrava do irmão dela constantemente. Mais do que deveria.
- É verdade. Eu morava tão perto da escola. Sempre acabava indo um pessoal almoçar lá em casa.
- E agora, você tá morando aonde?
- Ah, bem pertinho daqui. Uns dois quarteirões.
Ela me olhou abatida, emagrecida, distante. Mas continuava simpática, interessada, talvez por natureza, talvez forçosamente. O marido inspecionava os demais cômodos, enquanto ela se perdia entre nosso assunto mundano e a vista para o mar.
- Que bom. Bem perto da corretora então.
- É, prático, na verdade. E posso fazer tudo a pé por aqui.
- E as pinturas? Continuam?
- Ah. Não. Às vezes tenho vontade, rabisco uma coisa ou outra. Mas pintar mesmo... nunca mais.
- Hum. Pena. Seus quadros eram muito bonitos, tinham muita cor, muita verdade
Fiquei lisonjeada. Provavelmente enrubesci.
Ela não disse mais nada. Não me perguntou se eu era casada, se pensava em me casar, por que é que não havia me casado. Nem de filhos, nem de namorado. Como perguntavam (e perguntariam) todas e quaisquer mulheres do passado que hoje em dia esbarram em mim. Achei honroso da parte dela. Memorável.
De repente me surpreendeu novamente:
- Quanto detalhe morre depois que as coisas perdem razão de ser. Eu nem me lembrava mais do barulho das ondas.
Procurei me ater ao som que ela remeteu:
- É realmente o único que se ouve daqui de cima.
Ela me olhou de novo. Os esforços para permanecer de pé eram visíveis, quase pedia ajuda. Começou a chorar. Tive vontade de abraçá-la. Mas ele. Ele chegou depressa e o fez como ninguém poderia. Afundou-a em seu tórax comprido, era muito mais alto que ela. Me olhou por cima do ombro dela, fez um sinal negativo com a cabeça, contradizendo um sorriso sereno, discreto, um esboço de calma. Quis que eu não me preocupasse, não me impressionasse. Perguntou baixinho se ela queria ir embora. Ela disse que queria.
- Escuta, a gente volta na semana que vem. Gostei muito daqui, viu?
- Ah, que bom. Mantenham contato. Eu te dei o meu cartão?
- Deu, sim. Obrigado. Desculpe qualquer coisa.
E ele, de repente, se desconcertou. Depois dessa frase. Desculpe qualquer coisa. Eu quis chorar também.
- Você sabe, não é? Como a vida é complicada... – ele quase lamentou.
Eu fiz que sim:
- Não tem nada não. Qualquer coisa me liguem.
Ela virou a cabeça para se despedir de mim, esfregou os olhos vermelhos, fundos, de dor transbordante. Me disse um tchau sem som, uma despedida que eu nunca tinha visto igual.