- Pai, me ajuda a colorir isso aqui?
- Colorir o que, filho? – falou automaticamente, sem desviar os olhos do jornal.
- Isso aqui. A tia pediu.
E então descansou o jornal no colo e virou-se para o menino. Observou rapidamente o desenho. Contornos em preto e branco a serem preenchidos.
- Papai não sabe colorir direito, filho. Sua mãe é melhor pra essas coisas.
- Mamãe está dormindo.
O pai continuou a leitura matinal. O pequeno insistiu:
- Lá no seu trabalho... não tem que colorir?
Tentou conter o riso para não dispersar a seriedade da pergunta.
- Não, filho. Só criança colore.
- Pai, você já foi criança, não foi?
Ele entendeu. Garoto esperto. Venceu.
- Está bem, vamos colorir então.
Levantou-se da poltrona e os dois sentaram-se à mesa do escritório. O filho trouxe uma lata achatada, retangular, repleta de cores em lápis cuidadosamente apontados. Certamente não por ele.
- Você fica com essa parte que eu fico com essa aqui.
O desenho era grande, ocupava a folha A4 inteira. Os dois escolheram suas cores. As do homem neutras, pastéis, seguras. Cinza, preto, bege. As do menino fortes, intensas, ousadas. Cheias de estímulo visual. Vermelho, verde, magenta.
O filho canhoto, o pai destro. Nunca se esbarravam.
- Pra quando é esse desenho?
- Pra quando??
- Quando você tem que entregar ele à professora?
- Ah. Não sei. Ela não disse o dia.
O pai achou graça naquela ausência de prazos. Que só existe em tempos onde quase nada é obrigatório. Tudo era uma questão de impulsos vitais. Depois deduziu que o menino tinha senso de responsabilidade: não precisava da pressão de um ultimato para reconhecer seus deveres. Ficou orgulhoso.
Resolveu pedir opinião.
- Que tal esse cavalo, filho?
Crianças são automaticamente sinceras. Não aprenderam a medir conseqüências. Não foram ainda moldadas pela sutileza das inúmeras possibilidades do tratamento humano. Sentem e rebatem, como parede de quadra de tênis.
Não existem críticos de arte confiáveis. Existem crianças:
- Parece morto.
O pai se decepcionou consigo:
- Morto?!
Tinha colorido com cuidado, com dedicação. Mas, principalmente, com verossimilhança. Cavalo marrom, olhos pretos, crina preta. Talvez tenha sido isso.
- Morto. Parece que morreu assim, em pé.
O pai queria perguntar se o eqüino ao menos teria morrido feliz. Mas considerou que tal conceito ainda não havia sido introduzido. Achou que confundiria o menino. Adultos sempre supõem que as crianças sabem menos do que eles.
Descobriu, então, o que perguntar.
- Foi pro céu?
O menino olhou o animal com atenção. Pensou e rebateu novamente:
- Acho que sim.
E sorriu. O pai sorriu de volta e continuaram a colorir em silêncio.
O morto e o vivo.