Vocês estão me boicotando.
Dedicada e exclusivista, passei uma madrugada inteira encerando o chão da sala, uma manhã lavando a varanda e uma tarde lustrando os móveis. Está perfeito, eu pensei. À noite vocês chegaram. Chegaram e me trouxeram limões. Eu obedeci ao ditado ancestral e fiz uma limonada.
Vocês queriam comer pato e eu havia preparado camarão na moranga. Mas não. Vocês queriam pato. Não havia supermercado aberto. Mas e aquele seu pato? eles perguntaram. Não, o meu pato, não. Ele é como um gato pra mim, nenhum de vocês tem gato, cachorro?
Mas não adiantou. Estavam irredutíveis.
Dali a pouco estariam mastigando pedaços do meu carinho mais genuíno. Triturando e digerindo meus cuidados direcionados a um ser mais humano que todos os demais presentes. Devem ter enzimas específicas para sonhos de criança. Eu, traidora, perdi a fome e contive as lágrimas.
Vocês dançaram, beberam, se apaixonaram. Depois foram embora sem se despedir. E eu desperdicei o resto da noite lavando seus pratos. Me empenhei em remover todas as marcas de batom nos seus copos de cristal.
Agora eu vou dormir e eu vejo vocês, irônicos e ferozes. Vejo vocês revirando os olhos e dizendo que delícia esse pato. Vejo vocês e isso me tira o sono, me enoja. Vocês não estão mais aqui. Mas eu continuo dispneica, intoxicada pelos seus perfumes excessivos e cigarros cancerígenos.
Então eu choro, grito e quero sair (à rua) à procura de cada um de vocês. Quero falar palavras que vocês nunca ouviram. Quero despir-lhes de suas armaduras, destruir todas as suas portas corta-fogo. E incendiá-los com os seus próprios isqueiros. Quero banhá-los em querosene e dizer: olha aqui, a vida é feita de som. E Fúria. Depois ir embora e ignorá-los eternamente. Deixá-los a sós, vocês e suas queimaduras de terceiro grau. Eu também sei ser cruel.
Mas não. Não aprendi a deixar a negatividade me consumir. Dizem que eu sou doce demais para o rock’n’roll.
Vocês são dinossauros.
Têm verdadeiros cemitérios de frustrações. Todas devidamente esqueletizadas, sem carne, sem fisionomia. Restaram delas apenas as fotografias espalhadas pelas suas estantes. Completaram todo um ciclo de vida, hoje são osso e pó.
As minhas ainda no berçário. Frágeis, leves, sem qualquer tipo de imunização. Vocês alimentam-nas sempre que podem.
Vocês me fazem tombar as cidades que eu construí. Vocês quebraram o vidro, amassaram o capô e não pagaram o conserto. O prejuízo é uma fortuna e para esse tipo de carro não existe seguro.
E eu. Eu não sei ainda como se faz pra crescer. Só sei que é difícil.
Mas estou tentando.