Minhas unhas já não respondem mais à força das cores escuras que lhes são impostas. Quebram sem direção definida, sem motivo pertinente. Meus olhos não agüentam mais a luz. Nem as repetições, nem o ar condicionado do shopping. Imploraram para simplesmente permanecerem em estado de repouso ou me ameaçam de ardência inexplicável.
Meu olfato já não reconhece o seu perfume. Um outro cheiro sofisticado me distraiu, me convenceu de que você havia chegado. Puxei a toalha rápido, 100% de algodão (exceto efeito decorativo) e fui confirmar a presença tua. A toalha tentou conter os pingos, que se dispersavam no corredor, enquanto a minha certeza andava passos pequenos, silenciosos, em direção à porta. Esperei pela campainha, pelo barulho da chave, por um indício qualquer. Quis ver você entrando e me perguntando se eu tinha melhorado. Mas o olho mágico não revelou nada além do escuro típico dos-vizinhos-dormindo. Desculpe, foi engano. Desliguei assim, meio com vergonha. Vou me vestir, vou me deitar. Não queria mesmo que me visse desse jeito.
Porque todas as minhas partes perderam a função, se desnaturaram. E são apenas uma versão curta-metragem do meu todo. Não se sensibilizam mais ao meu toque. Nem ao seu. Nem ao de ninguém.
Minha temperatura não baixa mais. Me dá marasmo, me dá sono, me dá sonhos abundantes em poucas horas. Me dá frio no verão.
Me tira todo o resto: as vontades.
Minha dor já não cede mais ao paracetamol. Nem ao diclofenaco. Gostaria de transpirá-la em lugares super-lotados.
Poderia ia ao estádio torcer. Mas não me permitiriam o ingresso. O moço da porta falaria: você não pode entrar, está muito esquartejada. Como?! Eu tentaria rir, tentaria citar Proust, tentaria convencer-lhe de que, não, aquilo era um absurdo e eu estava inteira, sã e salva, em carne e osso, bem ali, diante de seu par de olhos céticos. Tentaria, por fim, chorar. Quem sabe a comoção não seja a melhor estratégia? Mas o mundo não se engana mais pelas minhas tentativas de vestir rosa. Eu detesto rosa.
Meus ouvidos já não sabem distinguir Wolfgang de Ernesto. Não sabem, não querem, não se importam. Desejam silêncio estarrecedor de presente de natal.
Desilusões acumuladas não respondem mais à injeção de ânimo do calendário novo. As folhas em branco, as mudanças a pensar, os aniversários a preencher. Nada disso levanta suspeitas sobre uma onda de positividade inevitável. Uma renovação, uma expectativa, uma promessa. Me ensinaram que é tudo besteira.
Preciso de um mar tão nublado quanto eu. Que me compreenda.