Foi na feira, num domingo chuvoso, que ela descobriu que as ambições literárias tinham entrado em coma profundo. Os médicos não lhe deram esperanças, a fé deixou de dar conta e o tempo passou. De repente não queria mais. Não queria livro, não queria coluna, não queria sequer artigo científico em revista de renome. Queria escrever sem retornos. Para que as repercussões fossem uma questão meramente seqüencial. Sem resultados significativos, sem manifestações ostensivas. Mas, principalmente, sem expectativas.
Percebeu-se inalcançável segundo os próprios padrões. Sentiu-se frustrada. E satisfeita. Estaria condenada a nunca mais ultrapassar o limiar de sua auto-crítica. Ao mesmo tempo, deliciava-se com a consistência de todos os seus pequenos pecados textuais. Conhecia com intimidade cada ingrediente responsável pelo fracasso ou sucesso da receita. Mas fingia ignorá-los.
Lambeu os dedos e perguntou ao pai: “será que eles colocam açúcar nessa melancia?” Ele riu. “Não. É doce assim mesmo. Eles abrem na hora.”
Queria escrever como reflexo patelar. Como resposta imediata aos estímulos externos. Não. Patelar, não. Os impulsos invariavelmente subiriam ao córtex, onde seriam interpretados, modificados, estruturados. Para que só então fossem cuspidos, moldados sob sua percepção distorcida e, finalmente, jogados no chão, onde explodiriam como estalinhos de festa junina.
Provou um biscoito amanteigado que lhe deu sede. Mas a única água disponível vinha do céu.
Escrever para suas emoções viverem mais. Escrever para se deixar permear com maior entendimento. E sem entendimento algum. Escrever por motivos infantis e imaturos. Por geléia de goiaba, bicicletas, amoreiras e piscinas redondas.
“Me ajuda a escolher umas flores pra sua mãe.” Ah, esses lírios aqui. Ela vai adorar o cheiro. “E estão bonitos também... amigo, quanto é?”
Escrever sem leitor, sem teclado, sem lápis e sem papel.
Porque, mesmo sem instrumento algum, de causa ou de conseqüência, continuaria escrevendo.