O rosto da moça do carro de trás se enche de vermelho. Mas ela parece não perceber. Está concentrada no sinal e no que ocorre em volta. Está escuro e eu deveria estar fazendo o mesmo. Mas o vermelho no rosto dela me incomoda. Solto o freio devagar até constatar que o carro continua parado. Eu me distraio, entre as músicas do disco novo e a lista mental de afazeres. Chegar em casa, jantar, tomar banho e estudar mais um pouco sobre os espetaculares bloqueadores neuromusculares. Não. Cansada demais. Chegar em casa, jantar, tomar banho e dormir. Dormir direito. Amanhã acordo 6 e meia.
Abre o sinal. Pra chegar em casa tenho que passar por uma rua escura e cheia de lendas urbanas. Mas isso não me incomoda mais. A rua é minha amiga e me poupa tempo, essa coisa que quanto mais a gente precisa, menos a gente tem. Pro meu pai, o tempo parece ser praticamente uma relíquia. Um fóssil de importante valor histórico.
Pros meus avós, o tempo é um pé de tangerina, que cresce lento e demorado. E dali a 3 meses eu pergunto: “vó, e a tangerina? Já deu?” Ela diz não. Ainda não. E sorri, sem pressa. Mas mamão tá dando a bessa.
Um cara me fecha, mas eu não reclamo. Tenho que fazer o trabalho de fisiologia ainda hoje. Pegar a aula que perdi no sábado. Revelar 2 filmes. Comprar 2 presentes. Isso fora o do meu pai. (Engraçado como oportunidades de demonstração de carinho, mesmo com intenções reais comerciais, podem se tornar fontes de estresse coletivo.) E, mesmo findadas as obrigações, sinto como se estivesse dormindo pouco, namorando pouco, vendo meus amigos pouco, estudando pouco. Indo a poucas peças, lendo poucos livros. O que será que ando fazendo muito para estar vivendo pouco? Um sinal ali na frente amarela e dou aquela aceleradinha carioca. Ufa... Passei. Lembro daquela música da Adriana Calcanhoto que eu detesto: “cariocas não gostam de sinais fechados...” Detesto mais ainda concordar com ela.
Chego em casa. Oi pro porteiro. Garagem. Estaciona. Sai. Elevador. Subo com um menininho que diz que o elevador tem cheiro de meleca. A mãe o repreende: menino, o que é isso? Hahaha. Tchau. Até logo. Relevemos o cansaço e a dor de garganta em prol da gentileza com os vizinhos. Isso me parece nobre.
Porta. Casa. Festa de cachorro, sempre pontual, sua fofa. Oi pra todo mundo. Estou com fome. Tem sopa, pode esquentar. Hum, o cheiro está bom. Como foi seu dia? Depois banho, depois cama. Igual a todo mundo. Mas aí ele me liga. Voz cansada. Diz que quer me levar amanhã. No caminho pro centro a gente conversa, hoje não deu.
Não deu tempo.