A esteira em baixo de mim passa rápido e os pensamentos somem. Conforme a velocidade aumenta, aumenta também a demanda de concentração em empurrar o chão para trás. As preocupações vão ficando pequenas, pequenas. Minúsculas. Até que somem. O moço da bicicleta do lado canta bem alto. Eu sorrio pra ele e digo, espaçadamente, que quem-canta... seus-males-espanta. Clichê. Ele canta mais alto ainda. Correr também expulsa anjos e demônios. A pulsação é latente, demarcada, perfeita. E posso senti-la na roupa. A roupa pulsa, o olho pulsa, tudo pulsa. Nada parece tão importante quanto correr sem parar. Até ver o cronômetro virar 29:59... 30:00. Como um reveillon, só que com mais adrenalina e menos promessas. Correr e pensar torna-se improvável e, por vezes, impossível. É aí que mora o segredo.
Alguém passa e diz que estou vermelhinha. Eu respondo rapidamente que se eu não ficar vermelhinha é porque tem alguma coisa errada. Lembro, então, das aulas de educação física quando, desde pequena, os amiguinhos riam do meu rubor exagerado durante atividades físicas. Mas a corrida me barra de novo, me poupa de qualquer esforço mental. Até mesmo no hipocampo, essa gaveta enorme que eu tenho pra guardar memórias.
Às vezes eu corro no inclinado e não chego a lugar algum. Mesmo assim me esforço. E então tudo é deslocado para um segundo plano que só existe em momentos como esse. Todas as desilusões estocadas, a raiva contida e as palavras grosseiras entaladas na garganta. Tudo se dissipa pelos poros, sob forma de água salgada. Salgada de tanto guardar, relevar e esperar o momento certo. Esse é o momento certo. Até mesmo a minha infinita lista deprimente de filmes e peças a ver parece perder sentido. As pessoas medíocres, as atitudes hipócritas, a falsidade explícita e descarada e todo o conceito popular de passar a perna em alguém. Tudo transpirado. A falta de tempo para os sentimentos nobres. Esquecida. Pelo menos por enquanto.
No momento certo, a inclinação se desfaz. E volta ao nível do mar. Sair do inclinado é como chegar num despenhadeiro e conseguir se equilibrar. O alívio.
Não bebo, não fumo... só jogo quando vale a pena. Não uso pílulas da felicidade, nem perfumes delirantes. Mas a endorfina é bem-vinda e fisiológica. Faz bem à circulação, à respiração e à auto-estima. E não vem com uma advertência desagradável. O fim do barato não traz a culpa ou a depressão.
Quando o tempo se esgota eu me sinto leve. A água limpa encontra a boca quente e desce gelada pelos órgãos cansados, irrigando o que foi agressivamente faxinado.
E tudo se suaviza.