Eu estava no banco de carona quando, de repente, interrompendo o silêncio das reflexões solitárias, ele me perguntou:
- Fê... O que é que tem de errado comigo?
Eu me espantei.
- Hã?? Como assim?
- O que é que eu faço de errado?
Pela fisionomia eu entendi, entendi tudo. Estava falando de mulher. (Se tem alguma coisa mais deprê do que mulher com dor de cotovelo é homem descrente da raça feminina.)
Eu quis falar tudo o que sempre senti em relação a ele.
- Sabe o que te falta? Naturalidade.
- Naturalidade??? Você me acha artificial?
Eu hesitaria. Mas mandaria na lata.
- Acho. Acho, sim. Falta um quê de poesia desleixada, subentendida naqueles olhinhos vívidos de quem não sei deixa levar pelos cochichos alheios.
- Mas nadar contra a corrente o tempo todo também é exaustivo.
- Eu sei, eu sei, você tá coberto de razão.
- Mas então se eu...
- Falta a paciência de quem espera sem saber. Falta matar o tempo com pequenos prazeres Amelié-Poulainicos: mergulhar a mão em um saco de lentilhas, afundar o pé nu em terra molhada, o barulho do pote do gato ao encontro do azulejo da cozinha. Falta aprender a saborear um único bombom ao invés de devorar a caixa inteira.
Você precisa ser mais essência, mais impulso. Menos tentativas, menos especulações e estratégias. Mais suco da fruta e menos suco da latinha: colorido e aromatizado artificialmente. Esqueça os conservantes e corra o perigoso risco de apodrecer, se decompor, definhar e desaparecer. Pra depois começar tudo de novo.
Não se estabeleça um prazo de validade. Mas também não me peça um certificado de incompetência. Não agora, não assim, desse jeito. Não perca as esperanças antes da hora.
Se atenha mais aos detalhes: o jeito com que ela molha os lábios, o barulho que ela faz ao rir, as meias que ela gosta de usar e a alteração de voz quando ela fica triste. A gente se apaixona pelos detalhes.
Seja bicho-do-mato mais vezes por semana. Quieto, introspectivo, minucioso. E dali a dois segundos preciso, extremo, instintivo. Tome menos cuidados com as palavras. Nossos dias estão repletos de gente civilizada, cheia de dedos e medos. Tenha menos preguiça de ser, mesmo que você seja um milhão de pessoas diferentes. Assuma todas elas; contanto que sejam... naturais.
Mas acabei respondendo alguma coisa bem óbvia e trivial, omitindo tudo. Como dizer a uma pessoa que ela parece forçada sem induzir uma grave crise existencial?
Deus do céu, como sou hipócrita.