Sobre o encontro das coisas terrenas com as coisas sublimes
E então, quando você menos esperar, você se encontrará conformada com as suas impossibilidades. Vai deixar de se questionar até que ponto todo sacrifício vale a pena. Vai se esquecer de perguntar, em silêncio, o que eu fiz pra merecer isso. Depois você vai simplesmente se automatizar no sentido de resolver as coisas e tornar tudo mais simples. É aí que mora o perigo.
Um belo dia, o seu inconsciente toma a decisão de mergulhar na escravidão do tempo, da rotina e das obrigações. Dorme. Acorda. Trânsito. Fumaça. Come qualquer coisa. Relógio. Conversa sobre coisas mundanas. Com pessoas mundanas. Falsidade. Interesse. Desconfiança. Tragédia no jornal. Cansaço. Estafa. Trabalhos. Prazos. Provar alguma coisa sempre. Por necessidade de sobrevivência. Cobranças, cobranças. Trânsito. Corre pra academia mais perto: todo mundo precisa ser saudável em algum ponto do dia. Suor. Mais cansaço. Trânsito. Casa. Ai. Chave na fechadura. Cachorro à sua espera: sempre feliz, sempre receptivo, sempre de braços abertos. Um sorriso natural (o primeiro do dia?) A família se entreolha e faz um rapidíssimo retrospecto do dia. Todos cansados. Olhinhos pesados, corpos sem forças. Cama, mesa, banho. Amanhã tem mais.
O fim de semana é a mansão das missões adiadas. É um casarão grande, bonito e abandonado porque o avô morreu, a avó mudou-se pra longe da tristeza. Os filhos não têm tempo ou disposição para ir até lá e os netos estão crescidos. Com namoradas, viagens e festas da faculdade. E eu já te disse: as metáforas são um excelente esconderijo.
Você está feliz porque vai encontrar os amigos que moram dentro de suas emoções e lembranças mais genuínas. Mas, ao chegar, o adjetivo mais usado para te caracterizar é: “sumida” e você se sente longe e distante das histórias, das piadas internas e até mesmo da maneira de falar uns com os outros: como se o carinho tivesse se dissipado e a magia estivesse guardada dentro de nossa antiga unidade excêntrica. Às vezes passa e estamos novamente invasivamente juntos, como há tempos atrás (aqueles tempos inocentes, lembra?) Às vezes não. E aí você vai pra casa pensando que talvez não devesse ter ido, perguntando por que insiste em certas coisas que pertencem somente ao coração de criança. Queria que estivesse chovendo, mas a meteorologia e meu estado de espírito não querem mesmo se conhecer.
Na volta pra casa surge um comentário sobre as voltas, os rumos e os destinos. Estamos todos no mesmo lugar? Ou aquele mesmo lugar ainda existe em cada um de nós? Alguma das alternativas tem a obrigação de ser correta. As reflexões sobre todas as coisas sublimes compensam uma semana, um mês, um ano de coisas mundanas.
Você se cansa mais uma vez e deixa de comparar as determinações e as felicidades. Deixa de se perguntar onde foi parar aquela intimidade implícita e subentendida, nas palavras de lealdade, com uma amiga que está tão perto. Conclusões inatingíveis talvez não mereçam nosso tempo precioso. Entrega os pensamentos a uma música que te preenche. Pra mim um quarteto de cordas seria o suficiente como prêmio de consolação. A clássica é a vida em forma de som. Mas a popular sempre me surpreende. Quartetos de cordas. A emoção e decisão do de “Hurricane”, a tristeza e a amargura do de “Eleanor Rigby”, a compaixão e o carinho do de “Melody of You”. Então vem a idéia de gravar um outro cd para os dias de engarrafamento interminável. O pessoal do carro vai gostar.
Lá fora um casal caminha calmamente. Aproveitando a manhã de domingo. O Cachorro se deita no chão da varanda... Ela gosta de sol e aproveita para acompanhar com a cabeça todos os suaves movimentos de uma borboleta. Simples isso. Queria escrever sobre a simplicidade da vida... Mas não enquanto não acreditar nela.