Sempre a mesma coisa. O telefone toca, a realidade me chama. Preciso de um bom motivo. Nessas horas eu sempre hesito e penso na proposta maluca de ir morar na lua. Ou simplesmente ficar aqui, imóvel. Aqui ninguém é louco ou são, somos só nós dois e o resto do mundo. Quero te olhar com aquela mistura dos sentimentos da ocasião até te deixar tonto e não saber mais distingüir vermelho de azul. Toda a magia de “tocar num rosto sabendo que ele espera pelos seus dedos”. Percorrer-lhe os cabelos pela centésima vez como se fosse a primeira, lentamente, explorando detalhes e sugerindo arrepios.
Vou fingir que sou invisível, que me perdi no espelho, em algum ponto entre o objeto e a imagem pra contrariar as leis da física. Só dessa vez. Tudo pra que ninguém perceba que estou no lugar mais óbvio possível, mas não sei mentir. Então finjo que não existo. Você me deixa transparente com um olhar.
Talvez a coisa mais desconcertante da vida seja uma pessoa que te desnuda sem desabotoar um só botão.
Me sinto relativamente sem graça quando me arrancam os mistérios, os medos e a identidade secreta. Mas talvez isso faça parte de um daqueles abraços. Um abraço tão apertado e pretencioso ao ponto de tentar fundir. Mas dois segredos não ocupam o mesmo lugar no espaço.
Tento me equilibrar na simplicidade, ignorando a vontade de imortalizar momentos sublimes com imagens distorcidas de mim e de tudo isso aqui dentro. Lá fora o mundo se atreveu a mudar, encheu a boca pra perguntar quem eu penso que sou. Tento abaixar o volume das coisas que fluem, chegam e ficam. Da próxima vez eu mando o convite. Ofereço bolo, café e um colchão pra elas dormirem. Elas dormiram. Faz silêncio porque esse momento é sagrado.
Posso dizer só coisas entre parênteses? Frases subentendidas e pinceladas em assuntos sem-saída. Esses não. Deixa eles lá na frente, onde eles moram. Você é linda, eu escutei. O verbo é como deveria ser. Forte e essencial. Toda a gramática dos olhos fechados é esquecida, e permanece intocável, dormindo no dicionário. Tudo dorme menos eu. O escuro tem muitas cores fragmentadas naquelas gotículas de ar, em surtos luminosos onde tudo o que podemos ver são sorrisos demorados. Talvez uma música que diz exatamente o que eu não disse possa me redimir das saudades antecipadas. Mas nem assim. Minha vontade não cala e escrevo coisas loucas em troca de paz. Antagonismos não necessariamente opostos, mas essencialmente genuínos. Como tênis velho e caderno novo. Enquanto isso espio pelas suas janelas um artista de rua que pinta um passarinho. Cavalete, tela, pincel e tinta. Boina de pintor, charuto no canto da boca. E um passarinho azul. As pessoas passam apressadas, distraídas, com cabeça no chão e pés também. Mas eu reparo.