Vou tentar não te ligar dessa vez. Me concentrar em todos os detalhes. Pra deixar essa falta que você faz adormecer. Se ela entrasse em sono profundo não seria tão mal. Porque é uma falta sem remédio e sem consolo. Nem mesmo o seu.
Mas você liga e rompe o meu pacto de silêncio, interrompe o meu ritual de congelamento de sentimentos sem-saída. Você quer desligar, liguei só pra conferir uma coisa: com quantos paus se faz uma canoa? Eu respondo um número inteiro. Inteiro não. Quebrado, despedaçado, quase definhando de uma coisa indefinível, um abismo de incertezas desconexas. Você quer desligar, devo estar te atrapalhando. Mas não é preciso ligar pra atrapalhar e ligar não atrapalha, não necessariamente. Só se eu quiser que atrapalhe. A partir de agora vai ser assim: só vou sentir o que eu quiser, onde eu quiser e na hora em que eu quiser. Eu sou a dona da minha própria abstração. Muito prático. Mas essa história não te convence.
Você quer desligar, claramente. Eu não. Pergunto como foi seu dia pra ganhar tempo. Tempo pra quê? Esqueço de montar uma estratégia e me envolvo nas suas casualidades, que são leves e sinceras. Agora eu sei desenhar alguma coisa que você não sabe. Você ri um riso cansado, mas paciente. Eu tento ser sutil, mas nunca sei se consigo. Enquanto não supero a distância entre as ondas sonoras minhas e suas não me dou por satisfeita. Como a satisfação é um objetivo inalcançável, tento escrever. Dessa vez num lugar em que você não precisa ler. Não necessariamente. Escrever é confiar às palavras todas as coisas indizíveis. Depois reconhecer a frustração de tentar e não conseguir. Não conseguir ser fiel ao que se sente. Não conseguir ser original, numa pretensão incansável de ser a única no mundo a experimentar todas as fases de um sentimento sem nome, ímpar, nobre. Às vezes sinto como se chegasse perto, muito perto de traduzir a eletricidade que me conduz em letras que me confortam. Mas não. Seria utópico da minha parte. E infantil.
Você quer desligar e não tenho mais palavras. Até amanhã então. Boa noite, bom sono. Dessa vez.
...
Posso te presenciar em cada pedaço do meu dia.