O livro aberto, a porta da varanda sempre aberta e a cabeça aberta para permear informações. Descarga de impulsos elétricos pra que eu consiga entender como funciona toda essa nossa maquinaria perfeita. Mas combatível, falível... um dia ela se rende, vocês sabem.
De repente tudo pára de fluir e eu me enxergo de fora. É sempre estranho quando você se observa fora do seu próprio corpo. Abobalhada, de olhos vendados, marionete dos papas da ciência. Isso me irrita, porque o domingo se foi e o Sol lá fora também. Fiz mil promessas ao mar mas não cumpri nenhuma, nem mesmo por educação. No máximo toquei um movimento de concerto caprichado, o que também não fazia há tempos.
Agora não tenho raiva, nem indiferença. Apenas uma paralisia nostálgica. Penso coisas. Um milhão de coisas desconexas. Deixa ele aberto na minha frente até que eu ceda aos seus apelos. Na maioria das vezes ele vence e convence. Aos poucos incorporo o fantasma da abdicação e, antes que possa perceber, me conformo. Adaptação. Lembro de Darwin outra vez.
Penso nas flores lá de fora, que se abriram. São vermelhas e simpáticas. No calor que hoje fazia no centro, tornando a pele grudenda e os cabelos suados. Em alguns planos eternamente suspensos, como as aulas de surfe e o curso de italiano. Nos amigos que pouco vejo, com quem não falo porque falta tempo mas que estão sempre lá: amigos. No cabelo que não cortei, nas contas que ainda não paguei, na fita de vídeo que ainda não fui buscar, no tênis velho que preciso trocar, no presente de aniversário do meu pai que não comprei. E tudo vai se resumindo a uma montoeira empoeirada de coisas a fazer deixadas de lado. A desculpa é sempre a mesma.
Mas daqui a pouco chego à essa rua sem saída, que é o único caminho possível pra onde eu quero ir. Vamos aos livros então. Que venham, em seguida, os hospitais. Alguém tem que cuidar do ser humano. Que, por sinal, anda pra lá de abandonadinho nessa cidade onde vivemos sob ameaça da sombra do que lemos nos jornais. Aliás, ontem eu decidi que não quero mais ler jornal. Pra tentar renunciar ao tal do confinamento. O físico é frustrante, é verdade; mas o psicológico é desesperador, Kubrich sempre soube bem. Quero tentar não receber o olhar sem esperanças do meu pai, quando comento automaticamente, já no café que inaugura o dia, a manchete ressaltada da primeira página.
Mas hoje de manhã tomei café sozinha e fui procurar uma companhia no chão do hall de entrada de casa. Refeições solitárias são muito monótonas e silenciosas pro meu signo barulhento. Esquentei uma xícara de leite e realizei o ritual proibido: li o jornal.